
Ler, escrever e amar...
Borboleta sem asas
Despertou... Corpo mole, quase inerte... As pernas fracas... Percebeu-se sem braços... Por que sem braços?
Aquilo não havia sido combinado... Florbela, a mais curiosa e estudiosa borboleta da floresta encantada, estranhou
a falta dos membros superiores. Quando abriu mão de suas asas para que o professor Tempo a tornasse por um
período de um mês um ser humano, queria tornar-se um ser humano completo e não faltando uma parte...
No entanto, Florbela tinha certeza que o sábio professor Tempo não fazia as coisas sem propósito, aquilo deveria
fazer parte dos seus preciosos ensinamentos. Agora ela, mesmo desprovida de suas “asas”, iria experimentar e
descobrir o sentido das palavras que acabara de aprender na escola das borboletas: homem, humano, humanidade!
Havia adormecido embalada pelo desejo do desconhecido, de aventurar-se a novos ares, de experimentar outros sabores.
Sentia as dores dilacerantes por suas asas terem sido amputadas, e o vazio impreenchível do que seriam
seus braços, mas, a todo instante lembrava-se que tudo aquilo fazia parte do seu desejo, da sua curiosidade.
Teve sede. Pensou imediatamente em voar até o lago mais próximo... Um longo caminho até lá, penoso, duro,
desconhecido. Mas ali não havia lago; havia pias, torneiras, filtros, copos.
Ali não havia borboletas e sim outros seres humanos...
Muitos seres humanos passaram por Florbela. Eram todos iguais e ao mesmo tempo diferentes.
Descobriu de imediato que no reino dos humanos também havia variedades de tamanhos e cores,
igualzinho ao que acontece no reino das borboletas! Ficou encantada e ansiosa pelo primeiro contato!
Ninguém! Por um longo período ninguém apareceu... Tentava levantar-se, mas não conseguia fazê-lo
sem os braços, sem as asas... Por que sem os braços? Por quê? Seria tão mais fácil levantar...
Precisava de alguém e naquele precisar descobriu que como ser humano deficiente não poderia viver
sozinha, e como não era mais borboleta, não poderia naquele instante vagar solitária pelos ares,
tão pouco pousar nas folhas que brincavam de balançar ao sabor do vento...
Alguém finalmente lhe estendeu as mãos, segurou-a pelo tronco e levantou o seu corpo.
Desequilibrou-se nos primeiros passos, mas logo descobriu a capacidade humana de adaptação.
Em poucos instantes as suas seis patas transformadas agora em duas pernas, sustentavam já com
certa destreza seu corpo debilitado.
Sentiu pela primeira vez um grande calor, precisava refrescar-se, mas tinham-lhe feito curativos nos
braços que não podiam ser molhados. Lembrou-se de quando a todo instante banhava-se nas mais
belas cachoeiras, outras vezes no mar... Era tão normal... Um banho! Precisava tanto de um banho!
Dias depois lhe concederam um banho de chuveiro. Foi como uma chuva de verão: forte e intensa,
e que cessa com a formação de um belo e colorido arco-íris de promessa; cada gota que lhe caía nas
costas lhe proporcionava um gozo extraordinário.
Descobriu a dependência. Precisava de ajuda para vestir-se, para levantar e deitar, para poder se alimentar.
Descobriu o sentido real das palavras amor e carinho, descobriu a atenção e a dedicação que
um ser humano, humano de verdade, é capaz de ter para com outro ser humano.
Descobriu também o cansaço e a impaciência de outros muitos pela ajuda repetida...
Descobriu o orgulho e que o orgulho a deixava com sede e com fome muitas vezes porque não
ousava dizer: ajude-me, por favor!
Descobriu a humildade que lhe fazia rogar que lhe trocassem o corpo de posição.
Todo o seu tronco estava comprometido pelas asas arrancadas... Sem asas, sem braços, sem dignidade,
principalmente quando não sentia a humanidade que tanto almejara conhecer.
Em suas andanças pela terra firme, descobriu que há seres humanos que além dos braços
também não possuem as pernas, outros não têm os pés, as mãos, o sexo... Sentia falta do sexo...
Sentia falta do toque, de alçar voo quando desejava... Liberdade... As borboletas são livres...
Os humanos “perfeitos” seriam livres? Parecia a Florbela que deveria ser assim, entretanto percebia que eles,
os seres humanos perfeitos, possuíam tudo, podiam tudo e não têm tinham a noção de nada,
não valorizam nada... Reclamavam de tudo o tempo inteiro como se deles tivessem arrancado
suas asas de borboleta...
O tempo foi passando e a vontade de voltar a ser borboleta aumentava.
Descobriu que os seres humanos sofrem de uma coisa horrível chamada culpa: quando não fazem alguma
coisa que deveriam fazer ou quando fazem alguma coisa que não deveriam fazer sentem-se mal.
Alguns tentam compensar com presentes e favores e na melhor das hipóteses com uma coisa chamada: “amor”.
Outros tentam inverter a situação e se fazem de vítimas... Outros ainda são tão desgraçados que confundem
os tais presentes com amor, ou o tal amor com presentes...
Criam para si significados que eles mesmos não compreendem nem sabem fazer uso.
Humanos, tão inteligentes! Tão superiores! Apostava Florbela que o desejo mais secreto dos seres
humanos era tornarem-se borboletas. Borboletas não matam umas as outras, borboletas não são
mais importantes ou menos importantes por causa da cor que carregam nas asas e
quando ainda lagartas, não se sentem menos borboletas...
O tempo foi passando e a Florbela humana sentia-se cada vez mais forte, cada vez mais disposta...
Conseguia fazer com os pés coisas inimagináveis... Tinha o que se chama: força de vontade...
Descobriu então que o ser humano pode escolher o que fazer com aquilo que possui ou com aquilo que não possui.
Pode escolher entre ser bom ou mau... Pode escolher copiar ou perdoar os erros dos outros...
Certa tarde encontrou um homem sozinho na beira da estrada.
Parecia que não comia há muito tempo. Florbela preparou um lanche para matar a fome daquele homem,
ela que não possuía braços. Aquele homem provido de todos os membros, perfeito em saúde reclamava
atenção, reclamava o alimento e não era capaz de ele mesmo fazer...
Faltava-lhe ânimo, faltava-lhe coragem... Recebeu a refeição preparada com todo amor,
comeu e esqueceu-se de agradecer. Florbela percebeu que o ser humano, mesmo sem deficiência
física alguma, também precisava dos outros seres humanas, descobriu enfim que ninguém pode viver
só e por isso Florbela sem braços, abraçou com o coração aquele homem completo de corpo
e esquartejado de alma.
Florbela sem braços conseguiu aprender a lição, Florbela sem braços compreendeu que não precisava
de braços para tornar-se humana, Florbela sem braços compreendeu o professor Tempo e sua intenção.
Florbela compreendeu o verdadeiro sentido de humanidade.
O mês findou. Era preciso voltar a ser borboleta. Florbela voa com suas asas rutilantes!
É borboleta e livre! A vida não findou. É preciso tornar-se humano e livre.
Livre da hipocrisia, livre da maldade, do preconceito, do racismo. Livre do desamor, da injustiça,
da mesquinhez. Livre da arrogância, da soberba. Livre de querer ser tão importante quando
não se consegue ser sequer humano...
E Florbela voltou ao seu corpo de borboleta muito mais leve, muito mais colorida, muito mais borboleta...
Foge, mulher maravilhosa!
Século XXI. Tempo de liberdade... ou de libertinagem...?
Já pararam para pensar que não é mais necessário esconder, por exemplo, por mais escandalosas
que sejam, as nossas outrora indizíveis fantasias sexuais? Tudo é permitido, natural
e até incentivado. É necessário satisfazer o ego, não reprimir os desejos, realizar-se enfim.
Afinal, quem não tem fantasias sexuais? Verbalizá-las não quer dizer que sejamos
capazes de realizá-las, e se fossemos, qual seria o problema? Melhor mesmo até inventar uma,
para não ser visto como careta, antiquado, ou sexualmente reprimido.
Então, sendo assim, gostaria de contar para vocês caros leitores, a minha fantasia sexual.
Que maravilha! Sei que seja ela qual for, não serei condenado! Viva a liberdade!
Viva a libertinagem! Se estão incentivando até a Mulher Maravilha a “fugir” com o Superman,
creio que ninguém será capaz de me ridicularizar por eu querer encontrar uma mulher
maravilhosa que comigo queira de fato, fugir... para outro planeta... longínquo... com menos poluição
sonora, onde possamos criar nossos filhos ouvindo músicas edificantes, com letras construtivas...
Mas, vou parar de enrolar e vou contar de uma vez a minha fantasia sexual. S
ou tarado por mulheres tímidas... ou mesmo sonsas... daquelas que jamais seriam capazes
de em público, fazer movimentos de conotação sexual, daquelas que sabendo-se deliciosamente
gostosas, ainda assim teimam em não exibir seus corpos esculpidos por Apolo e Afrodite
numa tarde de inspiração... Sou doido por essas mulheres! Elas sim sabem que o encanto
está no prazer de desvendar os mistérios dos seus corpos e de suas almas.
Essas sim são as mais sedutoras, mostrando suas silhuetas secretas apenas
para quem de fato possam apreciá-las além das coxas grossas, seios fartos e bundas frutíferas...
Essas sim, são as melhores damas de companhia e as melhores companheiras.
Eu quero muito uma mulher dessas. Eu preciso de uma mulher dessas.
Aí sim eu vou ser um homem “prá frente, prá frente...” Porque a cinturinha dela vai ser somente minha.
Sim, confesso, sou um homem egoísta. Mulher minha não pode passar de mão em mão,
de boca em boca, precisa se preservar, porque também faz parte da minha fantasia sexual
ser somente dela, e meu prazer será descobrir a cada dia como seu corpo reage a cada toque meu...
Minha fantasia é fazer-lhe sentir-se deusa, única e adorada. Adorada pela beleza do seu rosto angelical,
pela suavidade da sua voz, pela sua inteligência que lhe diferencia das outras tão iguais...
Mas sabe, está difícil de encontrar uma parceira capaz de me realizar.
Acho que vou morrer frustrado. As mulheres do século XXI têm fantasias sexuais diferentes da minha.
Elas querem mostrar o quanto são belas e sedutoras, são exibicionistas e até latem!
Assumem-se assim, naturalmente cachorras: “são as cachorras, au, au”.
São mulheres criptonitas para uma Superman feito eu. Nada contra elas, é que não gosto de latidos,
não suporto cachorrinhos de estimação... são animais muito fáceis de adestrar, obedientes
por natureza e capazes de se contentarem até com o resto que os outros comem...
Eu não, tratando-se de animais, prefiro os mais selvagens, puros na essência,
praticamente indomesticáveis e por isso instigantes... mas também, praticamente extintos...
Será que vou morrer me masturbando? Juro que não sou gay. Até já fui taxado assim por meus amigos.
Mas tenho direito de ter a fantasia que eu quiser, é ou não é?
Afinal estamos no século da liberdade, não é mesmo? Mas, como diz o ditado,
“enquanto há vida, há esperança”. Ainda hei de encontrar a minha mulher Maravilhosa e para ela,
tão somente para ela serei um Superman, e garanto, fugiremos todos os dias com toda liberdade
e libertinagem a qual todos os cidadãos do século XXI têm direito.
Castigo divino!
Hoje decidi não subir na balança, chega deste martírio diário! E dane-se a celulite, danem-se as estrias!
Vou colocar meu biquíni, protetor solar e vou para a praia me divertir um pouco sem me preocupar
com esses detalhes, afinal de contas, celulite que dizer: sou gostosa (em braile) e estrias são listras decorativas,
tatuagens naturais... Eu sou gostosa, linda, maravilhosa! Um mantra para elevar a autoestima
e tornar o dia mais feliz, porque para ser feliz, nada melhor que estar de bem consigo mesma!
E lá se vai Maria, cantarolando uma música de Kid Abelha “o que você precisa é de um retoque total,
vou transformar o seu rascunho em arte final, agora não tem jeito, cê tá numa cilada,
cada um por si você por mim e mais nada, uh eu quero você COMO EU QUERO”.
Com enfoque no COMO EU QUERO. Maria só queria João do jeito dela e se não fosse do jeito dela,
que fossem irmãozinhos como no conto de fadas “João e Maria”, afinal, transformar João no que ele é hoje
não foi nadinha fácil... Eram casados a pouco mais de cinco anos, os três primeiros muito complicados...
Nossa, que rapazinho problemático... Mas, agora está tudo quase bem, com mais um pouco de disciplina
e tudo ficará como Maria deseja... Deseja... Desejo... Falando em desejo... Maria, como todas as mulheres,
às vezes sentia-se insegura: será que meu marido me acha bonita? Será que ele percebe
a celulite em minha bunda? Será que ele fica olhando para as minhas estrias?
Será que ele ainda me deseja como no início? Se perguntasse, é claro que ele negaria,
diria que ela era linda e gostosa, porém, as mulheres sempre precisam de uma confirmação extraoficial.
E lá se vai ela, caminhando de encontro ao mar... Bonita, faceira, sensual, mulher enfim...
Olhares, buzinas, bom dia, princesa! Delícia. Gostosa. Que saúde! “Nossa, assim você me mata!” B
om, nada melhor para o ego do que ouvir e perceber que mesmo com estrias e celulites,
mesmo com o tempo que voa quando se trata de estética, parece que nada mudou de quando
tinha 15 anos até hoje, ou melhor, mudou sim, agora o assédio é bem maior.
Maria é como vinho, quanto mais o tempo passa, melhor ela fica, quanto aos detalhes indesejados,
são apenas detalhes. Já podia voltar para casa do meio do caminho, mas queria também curtir o mar e hoje,
em especial, testar de fato o seu poder de sedução. Lançaria seu olhar de menina inocente
cheio de malícia de mulher ao primeiro bonitão que passasse... Quase desistiu de encontrar, mas, lá vinha ele...
Moreno, alto, malhado, 38 anos, no máximo... Não resistiu nem ao primeiro olhar...
- Bom dia, minha linda!
- Bom dia? Já não passa do meio dia?
- É verdade... Será que posso sentar ao seu lado?
- Claro, fique à vontade, a praia é pública e não tem lugar marcado...
- Adorei seu senso de humor... Silêncio...
- Eu tenho essas tatuagens no meu corpo, mas eu sou católico, veja, tenho até os dez mandamentos
tatuados aqui no meu braço. Sou arquiteto e acabei de comprar um apartamento aqui perto. Como é o seu nome?
O meu é Antônio.
Maria teve vontade de enfiar o indicador na garganta e vomitar. Bem feito para ela,
quem mandou não ter vergonha na cara, afinal era casada e muito bem casada, não precisava testar nada,
muito menos a si mesma... Mas, por punição, respondeu:
- Meu nome é Joana, legal sua apresentação, me lembrou aquelas descrições de produtos em liquidação
com avaria, sabe? Quando o dono da loja faz a propaganda de toda a parte boa
para chamar a atenção do possível comprador?
- Realmente você é muito engraçada!
- Você acha mesmo? Maria sorriu com o canto da boca...
- Engraçada e linda demais! Estou adorando lhe conhecer.
- Obrigada. Bom, já estava indo embora. Maria começou a guardar suas coisas
na bolsa quando Antônio levantou:
- Acompanho você, mora aqui perto?
- Não precisa, eu te agradeço, prefiro ir só, sou casada e meu marido é muito ciumento.
- Ah, você é casada? Seu marido é um homem de muita sorte,
você é muito bonita e educada também. Então, independente de você ser casada,
acho que rolou uma química entre nós, se você quiser a gente pode
ir até o meu apartamento que é aqui pertinho, a gente pode trocar umas ideias,
tenho 41 anos, mas estou em forma.
- E o que é que tem a ver trocar ideias, você ter 41 anos e estar em forma?A
Ah, já sei! Você, com sua experiência de vida, afinal já têm 41 anos,
está em forma com o mundo do conhecimento, acertei? Então, que tal trocar ideias sobre literatura?
Qual o último livro que você leu?
- Aquele bem romântico, do Peri e da...?
- Ceci?
- Nossa, você conhece?
-É, li na oitava série... O Guarani, de José de Alencar...
- Lembra até o nome do autor! Pensei que fosse de Jorge Amado! Além de linda e engraçada, é inteligente também!
Silêncio...
- E então, posso te convidar para almoçar comigo em meu apartamento?
Maria ficou boquiaberta. Bem feito ser confundida com uma vadia,
quem mandou lançar aquele olhar? Tudo bem que o cara era o maior gostosão,
de boca fechada... Que merda!
- O senhor está confundindo as coisas, já lhe disse que sou casada.
Acho que o senhor deveria reler o décimo mandamento
que está tatuado aí no seu braço... Aliás, acho que o senhor deveria ler muito mais coisas...
- Um beijinho só não é pecado, sabia?
QUE MERDA! QUE MERDA! QUE MERDA! QUE CASTIGO DIVINO!
Maria terminou de colocar todas as suas coisas na bolsa e saiu sem olhar para trás. Passos largos, ritmo acelerado.
- Ei, amor, para onde vai com tanta pressa?
EU NÃO ACREDITO!
- Se toca cara, não está vendo que não estou afim?
- Claro que você está, você só está assustada, sei que você gamou na minha, gostosa!
- Se você continuar me seguindo eu vou gritar!
O “gostosão” enfim desistiu. Cheia de remorsos por conta do seu comportamento leviano,
Maria voltou para casa muito convencida de que não precisava provar nada para ninguém.
A partir daquele dia confiaria plenamente nas palavras do seu maridão, afinal,
quem melhor que ele para avaliar sua gostosura?
Sayuri Suto
PS: Resumindo, com celulite ou sem celulite, com estrias ou sem estrias,
abaixo ou acima do peso, nós mulheres, desejamos menos massa corpórea e
mais cérebro, portanto, se você é homem e leu este texto,
troque a academia por uma hora de biblioteca...
É muito melhor dormir ao lado de um barrigudinho culto e inteligente,
do que ao lado de um malhado babaca que não sabe sequer quem escreveu o Guarani...